PERFIL - AGOSTINHO FOLCO

24/01/2013 01:47

Muito Antes da Bengala

 

Bem-vindo a São Caetano do Sul.

A cidade, com pouco mais de 150 mil habitantes, está situada a 11 km do centro de São Paulo. Apesar da proximidade com a capital paulista, as realidades são muito distintas. São Caetano possui o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país e uma condição socioeconômica que poderia causar inveja a algumas das mais badaladas metrópoles europeias. Os investimentos em saúde preventiva são um diferencial da cidade e a existência de centros de saúde e convivência voltados para a terceira idade tornam comum encontrar numerosos grupos de idosos que aproveitam as opções de lazer que São Caetano oferece. Essas condições propícias permitem que as vovós e os vovôs sulsancaetanenses se ocupem de atividades diversas, como o futebol, de forma muito criativa.

É um belo sábado de sol. Os bares da Goiás, principal avenida da cidade, estão repletos de pessoas despreocupadas, concentradas apenas em comer, beber e jogar conversa fora. O tempo parece passar mais lentamente em São Caetano do Sul. Na cidade organizada, todos se movem vagarosamente, curtindo o clima, um contraste com os vizinhos da estressada São Paulo.

Por volta das 4h30 da tarde, a temperatura está na casa dos 22ºC, os ventos sopram a 18 km/h e a umidade relativa do ar é de 53%. É um dia ideal para uma partida de futebol no Anacleto Campanella, estádio municipal em que a Associação Desportiva São Caetano disputa suas partidas. Mas a equipe principal não está em campo, apenas os garotos da base do Azulão, como o time é carinhosamente conhecido. Garotos que, por sinal, também têm condição muito diferente dos que tentam a sorte nos grandes clubes da capital. Os carros caros e as famílias que acompanham os rapazes mostram que até no futebol a realidade de São Caetano é outra, contrastando com a miséria em que se encontram, na maioria dos casos, os meninos das equipes paulistanas.

Uma caminhada no entorno do estádio basta para perceber que uma pessoa é bastante popular na região. Agostinho Folco, 78 anos, é presidente da Bengala Azul, uma torcida do Azulão com característica bem peculiar: para se associar é preciso ser idoso.

Esse grupo liderado por Agostinho ganhou notoriedade no país, sobretudo na primeira década deste novo milênio, quando o São Caetano foi vice-campeão brasileiro por duas vezes, vice-campeão da Copa Libertadores da América e campeão paulista. Com a ascensão meteórica da equipe, a Bengala Azul também teve grande projeção.

“Seu Agostinho? Conheço. Ele costuma ficar perto das mesinhas de dominó, com um monte de tiozinhos. Toda tarde lá pelas quatro eles se juntam ali”, informa um dos seguranças do estádio. Mas na caminhada, nada dos idosos e nada de Agostinho. Em outro portão, outro segurança aconselha: “Ele fica sempre ali perto das piscinas, vendendo camisetas. Ele é o presidente da Bengala Azul, mas tem o Toninho, que é o vice. Dá um pulinho lá.” Mais um portão e um rapaz indica uma possibilidade: “Ele tá sempre com os meninos do batuque. Acabou um jogo agora, dá uma volta aí, de repente você encontra ele.” Mais uma caminhada em volta do Anacleto Campanella em vão.

Finalmente, um grupo de idosos chega às mesinhas para jogar dominó e as informações ficam mais precisas. “Se você quer encontrar ele aqui, tem que vir de semana, umas quatro ou cinco horas. Ele sempre fica aqui. É só você ver um fusquinha vermelho que ele tá por perto”, informa um solícito senhor de óculos, rosto avermelhadamente saudável e barbas grisalhas que se identifica como Antonio Carlos. O tempo passa e nenhum sinal do líder dos bengalas azuis. Uma tentativa de deixar um recado a Agostinho esbarra em uma revelação surpreendente. “Nós estamos meio brigados com ele”, diz um dos idosos enquanto outro interrompe: “Nós não, ele é que tá brigado com a gente”. O motivo desentendimento entre os amigos? “Ele é um velho muito birrento, tá sempre querendo fazer tudo sozinho”. Diante da informação de que Agostinho é procurado para um trabalho jornalístico, Antonio Carlos vai logo entregando: “Ah, é pra isso? Vixi, então ele vai topar. Ele adora essas coisas. Sempre vem gente aqui procurando ele. É só ver um microfone, uma câmera que ele já se abre todo.” Então, pega o papel com o contato e promete entregar ao amigo. A primeira tentativa de encontrar o presidente da Bengala Azul termina com incertezas. Ele parece ao mesmo tempo tão perto e tão longe.

Na terça-feira seguinte, algumas ligações telefônicas levam ao local de trabalho do Toninho, vice-presidente da torcida, que fornece, finalmente, o número de Agostinho Folco. A ligação é imediata e um homem de voz firme atende. Enfim um primeiro contato com o ilustre torcedor é iniciado. Muito receptivo, ele sugere um encontro horas mais tarde, em uma partida válida pela série B do Campeonato Brasileiro de Futebol.

A noite chega agradável a São Caetano. Os 23ºC se aliam a ventos que sopram a 10 km/h e à umidade relativa do ar que gira em torno de 57%. A Lua brilha no céu e oferece uma noite perfeita para a prática do futebol. São 19h30 e dessa vez não há meninos, mas os atletas principais da AD São Caetano perfilados com os jogadores do Bragantino para a execução do Hino Nacional em mais um jogo da série B.

Poucos torcedores vão ao confronto e com a ajuda do vendedor de amendoins não é difícil encontrar a Bengala Azul nas arquibancadas.

Agostinho não sabe, mas é observado. Ele é um homem esguio, com aproximadamente um metro e setenta de altura. Os cabelos completamente brancos, que lembram um grande chumaço de algodão, ficam quase sempre escondidos sob um chapéu no melhor estilo Indiana Jones que ostenta o logotipo da torcida. Uma camiseta da Bengala Azul, uma calça jeans tradicional e um par de tênis preto com o símbolo da marca Nike em vermelho completam o visual do vovô.

Inquieto, apesar dos 78 anos, ele sobe e desce os largos degraus da arquibancada para conferir cada faixa, cada bandeira estendida pela torcida. São pouco menos de 20 membros da organizada dos idosos presentes ao estádio, mas todos estão muito animados.

Agostinho passa o primeiro tempo em pé, encostado em uma grade que espanca sempre que o São Caetano ataca. Aos 28 minutos, Geovane recebe lançamento pela direita e fuzila contra o gol bragantino. O time da casa abre o placar para delírio dos vovôs torcedores, que elevam ao ar em movimentos frenéticos as bengalas azuladas feitas em isopor, um dos poucos materiais permitidos pela polícia dentro do Anacleto Campanella. Poucos minutos depois, Éder faz o segundo gol para o Azulão, que ainda vê um jogador do visitante ser expulso. O jogo vai para o intervalo e chega a hora de conhecer Agostinho.

Os quinze minutos de intervalo revelam um homem simpático, carismático, dotado de ótima memória e de boa articulação política, apesar da isenção nos comentários sobre o assunto, o que mostra que os anos certamente lhe ensinaram a ser muito cauteloso. Ele comenta o primeiro tempo do Azulão, mas prega cautela e lamenta o fato de o recanto dos bengalas azuis ter sido desocupado pela Prefeitura para dar lugar a uma base da Guarda Metropolitana. Receptivo à ideia de ter o perfil produzido, o presidente da Bengala Azul se oferece para mostrar um espaço dedicado à organizada.

O segundo tempo da partida não oferece grandes emoções e, ao final do jogo, é hora de conhecer o local onde se concentram as memórias e os objetos da torcida de idosos do Azulão. Agostinho mostra mais uma vez a saúde em perfeitas condições e, com agilidade invejável, retira em poucos minutos as faixas que ficaram espalhadas pela arquibancada.

Ele é respeitado por torcedores de outras organizadas do Azulão e pelos policiais incumbidos da segurança no estádio municipal. O respeito é tão grande que, antecipadamente, o idoso é advertido pelo tenente da Polícia Militar sobre uma possível punição a alguns torcedores que se envolveram em uma pequena confusão durante o jogo. Um dos brigões faz questão de se dirigir ao “Seu Agostinho”, como é carinhosamente chamado pelas pessoas que o rodeiam, para explicar a encrenca. Calmo e diplomático, o vovô tira de letra mais esse problema e deixa claro que não parou no tempo e sabe negociar com os mais velhos e com os mais jovens com a mesma habilidade.

O conhecimento sobre futebol é profundo e foi adquirido nos mais de 60 anos envolvido com o esporte. Perdido nos cacarecos da torcida, os olhos brilham e seu Agostinho parece uma criança rodeada por brinquedos mágicos.

Uma intrigante constatação se faz nesse contato: Seu Agostinho não é um torcedor comum. Um torcedor comum jamais teria acesso às chaves que abrem o estádio da cidade. Seu Agostinho tem. E não tem somente acesso, mas as suas próprias cópias.

Cortez como os cavalheiros de décadas passadas, o simpático vovô aceita o convite para um encontro no dia seguinte, na sala que reúne a história da Bengala Azul e parte interessante da vida esportiva de São Caetano nos últimos 60 anos.

No dia seguinte ao jogo, pontualmente às 19h30, seu Agostinho aguarda próximo da piscina, papeando calmamente com um dos seguranças. Temperatura na casa dos 20ºC, ventos soprando a 14 km/h e umidade relativa do ar girando em torno de 60%. Ótimo clima para um bate papo.

Seu Agostinho é um homem simples. Do vestuário ao tratamento é muito diferente do “vovô exibido” descrito por alguns dos jogadores de dominó do entorno do estádio. A conversa avança e fica fácil perceber porque a popularidade de Seu Agostinho é incômoda para algumas pessoas.

A história do presidente da Bengala Azul começou no distante dia 3 de maio de 1934, no bairro da Penha, em São Paulo. Agostinho Folco. Esse foi o nome escolhido para o primeiro filho da enfermeira brasileira Olga e do alfaiate italiano Alberto.

Quando o menino tinha três anos, a família deixou a Penha e foi morar no Fundação, bairro de São Caetano do Sul paralelo à linha do trem. O lugar era um deserto, afirma um Agostinho com olhar de quem recupera imagens perdidas no tempo. A rua possuía três chácaras que eram vizinhas de uma das empresas do grupo Matarazzo, império industrial brasileiro do século XX. Em uma delas, vivia a família Folco. O primogênito do casal se lembra das inúmeras vezes em que quebrou os vidros da fábrica da Matarazzo para entregar frutas aos funcionários. Anos mais tarde, a família de empresários decidiu expandir seus negócios e pressionou os pais de Agostinho, que cederam e venderam a propriedade.

De mudança para a Rua Alagoas, quando tinha aproximadamente 10 anos de idade, Agostinho não imaginava os grandes momentos por que passaria até 1968. Aos 14 anos decidiu, juntamente com alguns amigos, fundar o Botafogo Futebol Clube, mas somente dois anos depois, em 15 de novembro de 1950 o clube seria registrado. A “Estrela” da Rua Alagoas, número 203, rapidamente se tornou um ícone em São Caetano do Sul. Seu Agostinho ainda era somente o jovem e comunicativo Agostinho Folco, que se tornaria aos poucos um rapaz de extremo prestígio e popularidade entre os cidadãos sulsancaetanenses. Como presidente do Botafogo, seu Agostinho recorda que montou uma equipe respeitável de colaboradores e passou a organizar inúmeros eventos de grande visibilidade na cidade.

Todos os anos, à época do aniversário do clube, a equipe, que o presidente da Bengala Azul faz questão de elogiar efusivamente, preparava os eventos comemorativos que eram grandiosos e cheios de pompa, apesar do início pobre do clube que nem sequer possuía dinheiro para os uniformes de seus atletas.

A conversa flui prazerosamente e seu Agostinho conta histórias de forma encantadora, como o avô que narra as mais inacreditáveis fábulas aos netinhos. Mas o brilho nos olhos do idoso não está lá em vão. Ele saca duas sacolas repletas de fotos e reportagens muito bem conservadas para comprovar o que conta. Então, a história está ali, em frente aos olhos de quem quiser ver. Um historiador certamente se inebriaria com o perfume exalado pelas páginas amareladas pelo tempo. Pouco precisa ser pesquisado. Pouco precisa ser confirmado. O brilhante trabalho da imprensa nos anos 50, 60 e 70 torna críveis todas as narrativas que soavam tão mágicas, tão cheias de encanto e nostalgia. Fotos e mais fotos mostram homens e mulheres garbosos, repletos de juventude em uma época ingênua, em que os bons modos imperavam.

As lembranças inundam a alma de seu Agostinho e provocam risos contagiantes. Por alguns instantes a cabeça voa para muito longe, para um passado tão distante, mas tão próximo que é quase possível ouvir a música de Germano Mathias e sua inconfundível batucada em latas de graxa na festa de 1958, organizada pela equipe do jovem Agostinho no elegante Club Comercial de São Caetano. Desse evento, uma passagem que hoje soa engraçada causou grande aflição ao presidente do Botafogo e a seus fiéis escudeiros.

O Brasil havia se sagrado campeão mundial de futebol pela primeira vez, na Suécia, e o goleiro Gilmar, do Corinthians, era uma das estrelas daquela geração. Agostinho e sua equipe contrataram o goleiro para coroar a rainha do Botafogo no baile que ocorreria em 22 de novembro daquele ano. Cartazes com a programação foram espalhados pela cidade, faixas foram confeccionadas, mas Gilmar teve um problema familiar e precisou viajar ao Rio de Janeiro, cancelando a participação no evento às vésperas do grande dia. Depois de muita tensão, um substituto foi escolhido: o atacante Zague, goleador do alvinegro de Parque São Jorge na década de 50, que alguns anos depois faria história jogando no México.

Seu Agostinho conta, admirado, que na comitiva de Zague havia um locutor da Rádio Record, e que até hoje se pergunta quem era. Foi esse locutor, palavras de seu Agostinho, quem salvou a pele dos diretores do Botafogo naquela noite. Com um discurso emocionante envolveu a multidão presente no grande baile e fez com que Zague fosse ovacionado e a ausência de Gilmar passasse despercebida. Décadas se passaram, mas o sorriso de alívio ainda toma a conta da face castigada pelo tempo.

O Botafogo proporcionaria em seus eventos grandes momentos para São Caetano. Um jogo de futebol feminino nos anos 50 era quase impensável, mas Agostinho e seus amigos organizaram uma partida, num Anacleto Campanella com arquibancadas de madeira e que ainda se chamava Estádio Milton Feijão. Duas equipes de garotas das Linhas Para Coser se enfrentaram e podem ser consideradas precursoras do futebol feminino na cidade.

O Clube organizou ainda uma equipe de atletismo. Se no futebol Agostinho não se metia, nas corridas pedestres, como gosta de frisar, ele não se escondia. O Botafogo chegou a representar a cidade de São Caetano na São Silvestre. E, para provar, seu Agostinho mostra um recorte de A Gazeta Esportiva da 33ª edição da prova em que seu nome aparece na 553ª posição. Orgulhoso, exibe também várias cartas da Prefeitura de São Caetano enaltecendo os feitos dos atletas do clube da Rua Alagoas.

Nesse momento, seu Agostinho fecha a expressão e reclama. Foram anos e mais anos dedicados à cidade e hoje, lamenta o idoso, o acesso às autoridades de São Caetano ficou muito mais difícil. Com carinho e nostalgia, lembra-se e cita, um a um, os vários prefeitos que o recebiam sem maiores cerimônias e que davam suporte aos eventos organizados pelo Botafogo.

Os recortes de jornal, a simplicidade e o desprendimento de seu Agostinho mostram que tudo o que já fez pelo esporte de São Caetano foi por amor e não para aparecer, diferentemente do que pregaram alguns desafetos do dominó do entorno do Anacleto Campanella.

É impossível, em alguns momentos, narrar sua vida separando-a do esporte. O homem, que não fuma, tem nos eventos esportivos um vício ainda incurável aos 78 anos de idade.

Quando seu Agostinho se recorda das provas pedestres organizadas em São Caetano, ri e revela que o pódio era feito em cima de caixas de cerveja. Mais uma vez as fotos confirmam as informações. Ferros presos a paralelepípedos e cordas formavam a área demarcada para a chegada dos atletas. Rojões eram a senha para que ruas de São Caetano fossem interditadas para a passagem dos competidores. Tudo muito bem esquematizado e, mais uma vez, seu Agostinho tira de uma sacola o desenho, feito a mão, com o trajeto e o planejamento de uma das provas organizadas pelo Botafogo.

Foram anos em que o velho Agostinho colecionou amigos e lindas histórias.

“Aquele povo lá me deixou muitas saudades. Inclusive, vou confidenciar uma coisa pra você. Nas minhas orações à noite, quando vou rezar, eu peço pra que aqueles meus amigos, vou me emocionar agora...” A revelação é seguida de lágrimas sinceras, bonitas, emocionantes e são seguidas de um silêncio que só se interrompe com alguma ajuda: “O senhor pede por eles nas orações?”. A resposta é ainda mais bonita, mais tocante e vem com a voz embargada, quase inaudível: “Eu peço. Eu peço...”

Seu Agostinho se lembra com carinho das inúmeras reuniões na casa de seu Alberto Folco, onde os vizinhos se encontravam para assistir televisão. Alguns levavam bolo, outros levavam doces, bebidas, alegria, amizade sincera. A eles se juntava um grupo que morava na Vila Califórnia e que levava batuques para fazer um verdadeiro fuzuê. Encerra dizendo que ficou muita saudade desse tempo, de gente que jamais poderá esquecer e que formava uma grande família.

A crise com antigos amigos do dominó deixa seu Agostinho pensativo, cabisbaixo e ele mais uma vez se mostra nostálgico: “Sabe, quando começa a se criar um obstáculo eu vou buscar o passado, então começa a me clarear a mente.” E confessa que se lembra da forma com que alguns amigos agiriam em determinadas situações. Tudo muito simples, mas cheio de alma.

Os comentários sobre a família são poucos, mas sempre carinhosos. Para descrever os pais, o torcedor do Azulão é lacônico, monossilábico, mas suficientemente competente para fazer entender que a relação era muito boa, repleta de amor.

Dos irmãos também fala pouco. Eram três até a morte de Valter, cinco anos antes. Então, hoje, são apenas dois: Terezinha e Rubens.

Valter se internou para a realização de um exame de endoscopia e acabou morrendo num hospital da cidade de Santo André, uma semana depois, em decorrência de uma hemorragia que o deixou na UTI. A família tentou cobrar explicações, mas elas nunca foram suficientes para explicar o inexplicável. O assunto incomoda, desnorteia e é rapidamente desviado.

Dona Eulália veio de Minas Gerais e foi morar na Rua Alagoas, em uma casa muito simples, vizinha à da família Folco. Ela assistia às festividades botafoguenses do portão de casa. Aos poucos, uma paquera se iniciou e acabou em casamento quando Agostinho tinha 30 anos. Eulália se casou conhecendo a rotina do presidente do Botafogo e jamais o impediu de se dedicar ao clube ou à AD São Caetano anos mais tarde, ou a qualquer outra atividade esportiva que ele quisesse assumir. Ele até tentou levá-la algumas vezes ao estádio, mas os convites eram sempre recusados. Atualmente, o dia de seu Agostinho é dividido em três: a primeira parte é voltada às atividades familiares, a segunda é destinada ao clube e à torcida e a terceira, já tarde da noite, é novamente direcionada ao convívio familiar. E assim, o aposentado toca a vida.

Outra lembrança vem à memória do presidente da Bengala Azul e o leva às gargalhadas. Ele se recorda do ano de 1960, ocasião em que decidiu, juntamente com seu grupo inseparável de amigos, decorar um caminhão para os festejos do 83º aniversário de São Caetano. O “carro alegórico” era feito com plástico e papel de seda, sob a forma de uma caixa, de onde sairia uma bandeira da cidade assim que o cortejo parasse em frente ao palanque das autoridades. Fogos de artifício seriam disparados. Tudo corria muito bem, mas um pavio, longo demais, acabou causando um incêndio de grandes proporções. Não fosse a presença do corpo de bombeiros, algo grave poderia ter acontecido. Mesmo com a seriedade do fato, seu Agostinho se acaba em risadas.

Um segredo é guardado a sete chaves. Para que time o presidente da Bengala Azul torcia antes de se devotar ao Azulão? Marcio, Margarete e Marcelo, os três filhos da união com Dona Eulália torcem pelo Corinthians. Seu Agostinho, entretanto, não revela nem com o gravador desligado para quem torcia e prefere uma fuga estratégica: conta que hoje torce pelo Azulão, mas que antes era torcedor do preto e branco do São Caetano Esporte Clube, equipe fundada em 1914. Revela, ainda, que perdeu as contas das vezes em que pulou o muro do clube da Rua Ceará para assistir às partidas do alvinegro sulsancaetanense.

Mais um bate-papo chega ao fim e um último encontro fica agendado.

Domingo, 10h da manhã. São Caetano do Sul tem um dia de sol glorioso, registra 24ºC de temperatura, os ventos sopram a 24 km/h e a umidade relativa do ar está em 58%. Como de costume, de longe é possível perceber os cabelos brancos parados em frente ao Anacleto Campanella. Os encontros criaram alguma intimidade e a saudação de seu Agostinho é calorosa. Nas mãos mais sacolas, mais fotos, mais recortes de jornal, mais revistas e muito mais histórias.

Seu Agostinho fala um pouco mais da família. Conta que, coincidentemente, ele e Dona Eulália aniversariam no mesmo dia. Ele nasceu em 1934 e ela em 1943. Desnuda a vida dos filhos e da única neta, uma estudante de jornalismo que se interessa muito pela história da família Folco. Ele fala com orgulho de seus meninos, das dificuldades, de como são amáveis e, com um ar de missão cumprida, afirma que ninguém na família fuma, ninguém bebe, que são filhos exemplares. Fala mais da irmã Terezinha. Elogia a mãe, que trabalhava madrugada adentro, das 7h da noite às 7h da manhã e, ainda assim, ajudava quem encontrasse pela frente sem cobrar um centavo. Recorda dos momentos em que ajudava o pai com as calças da alfaiataria quando, então, aperta os olhos como se estivesse ouvindo o barulho do ferro à lenha sobre o tecido. Momentos familiares, momentos sublimes que mostram que a vida desse homem está restrita ao esporte e à família.

Diverte-se e volta a gargalhar quando se lembra da escola, que frequentou somente até a quarta série. E confidencia que só chegou ao fim do primário porque espiava as provas dos vizinhos. Sem o menor pudor diz que “não dava pra coisa.” Ainda se lembra da nota obtida no quarto ano: 61.

É curioso perceber que, apesar da intensidade das atividades que organizava, Agostinho trabalhava muito. Os empregos foram poucos, mas duradouros.

Os primeiros foram em São Caetano, até que surgiu uma oportunidade com os Calçados Clark, primeiro na Fábrica da Moóca, depois na Praça da Sé. Iniciava-se uma fase em São Paulo.

A empresa pediu concordata e Agostinho sentiu o sabor do desemprego. Em uma página de jornal, uma nova oportunidade se apresentaria: a Old England, loja de acessórios importados. O início foi na Rua Marconi, no centro de São Paulo, mas depois de algum tempo foi parar em uma loja no cruzamento da Rua Augusta com a Alameda Lorena, ponto nobre da cidade.

Foi na Old England, inclusive, que o presidente da Bengala Azul se aposentou, depois de viver anos muito felizes. Ele se destacou e exerceu cargo de destaque, como nas outras empresas por que passou. Na gerência da loja, conta sem modéstia, revolucionou a decoração. Isso atraía, em suas palavras, gente de diversos lugares para ver as suas vitrines, sempre originais. Personalidades como Hebe Camargo, Jô Soares e Clodovil eram clientes habituais.

Mas os anos se passaram e o desejo pela aposentadoria se intensificou. Então, a Old England e a cidade de São Paulo ficaram para trás e São Caetano do Sul passou a ter ainda mais a atenção de seu Agostinho.

No bairro Olímpico, onde reside atualmente, ele é conciliador e fala a língua dos jovens torcedores do Azulão. Politicamente articulado, revela que, a pedido de um político de prestígio na cidade, chegou a se candidatar a vereador, mas depois de analisar a situação com os filhos, decidiu retirar a candidatura por acreditar que a vida política nada lhe acrescentaria e poderia, ainda, atrapalhar as atividades na torcida.

A simplicidade fica evidente quando revela que teve um fusca azul e outro bege, ambos roubados e que agora está com um “vermelhinho”. Dois dos filhos trabalham em uma montadora norte-americana da cidade e já se ofereceram para ajudar o pai a comprar um carro mais novo. Seu Agostinho recusou e não abre mão de seu fusca, que usa para coisas simples, sozinho ou com Dona Eulália: ir ao supermercado, à feira e, no máximo, até o estádio do Pacaembu, onde treinou atletismo nos longínquos anos 50 e 60.

Sobre o futuro, é realista. O que pode planejar aos 78 anos de idade? Ele quer ser feliz vivendo o momento. Quer ter saúde. E sobre a morte, como ele mesmo diz, “não teme a bichinha”. Conta que uma vez foi a um missa na Rua Piauí e que ouviu no sermão do padre algumas considerações sobre a morte que decidiu tomar para a sua vida. Morrer seria como dormir, a única diferença é que ao acordar se depararia com uma nova vida, uma nova realidade.

O acervo? Talvez deixe para a Fundação das Artes da cidade ou para a neta.

Mais uma vez agradece a Deus o fato de os filhos jamais terem se metido em encrenca.

Para finalizar, algumas fotos na arquibancada do estádio Anacleto Campanella, sob o sol agradável de uma manhã de outono em São Caetano do Sul. O olhar se perde no horizonte, até que recobra a consciência. É domingo, dia de almoço com a família, quase meio dia. Seu Agostinho se despede com a certeza de novos encontros e sai em disparada pelas ruas do bairro Olímpico dirigindo seu fusquinha vermelho.